Já pensou viver dentro de um crocodilo? Melhor, viver dentro de qualquer animal? Sim, parece uma situação deverás bizarra, difícil de acreditar que seja possível. Mas um certo escritor ousou imaginar tamanha situação sem sentido e colocou de fato um sentido para a engraçada e complicada situação. Fiódor Dostoiévski escreveu sobre um homem que é devorado por um crocodilo e decide viver dentro dele, literalmente (e também um pouco metaforicamente).
O livro O Crocodilo não foi meu primeiro contato com as escritas do pensador russo. Antes havia trombado com o Crime e Castigo, uma leitura muito mais densa e puxada, provavelmente por ser uma leitura mais longa e que demande maior atenção, mas O Crocodilo, apesar de mais curto é de uma clareza melhor em seu objetivo.
Perdão ser tão direto com relação a essa introdução sobre o livro, e por fazer essa comparação entre as duas obras do leitor, mas faço isso para tentar demonstrar o quão interessante Dostoiévski pode ser em suas variações.
Antes de falar sobre o enredo da obra e seus personagens em questão, quero deixar uma ressalva sobre a diferença que vejo nos livros de alguns escritores de gerações passadas e de nossa geração atual. Ao ler Dostoiévski, Kafka, Chesterton, entre outros, é fácil observar que não são apenas romances que terminaram e te deixaram ansiosos pelo próximo livro, mas são textos que querem sacudir sua mente e te obrigar a pensar a situação. Não quero dizer que os que querem contar apenas um bom romance estejam errados, só que ao ler esses outros autores se prepare para algo mais.
O funcionário público, a esposa e o crocodilo
O livro conta sobre o funcionário publico Ivan Matviéitch, que ao visitar uma galeria de lojas em São Petersburgo, por descuido, acaba sendo engolido por um crocodilo em exposição e sobrevive mesmo dentro do animal. A situação choca a todos no recinto de diferentes formas, Ielena Ivânovna, esposa do devorado, fica assustada e preocupada com o marido (e como aquilo prejudicaria sua vida financeira), o Siemión Siemiônitch, amigo e narrador, fica preocupado com a saúde do amigo e como tirar ele lá de dentro. O mais incrível, é a reação dos donos do animal que ficam em pânico para saber se o animal não foi o mais afetado com aquela situação. “Oh, meu crocodilo, o Mein Allerliebster Karlchen! Mutter, Mutter, Mutter!”¹ é praticamente essa a reação do dono e sua mãe.
Conforme a narrativa acontece os personagens vão se revelando cada vez mais. A decisão de viver dentro do animal traz diferentes reações no decorrer do conto. As verdadeiras intenções de cada um vão se revelando e cada ação critica a situação da época. Os personagens são alegorias para as visões da época, sendo o crocodilo a maior alegoria do livro. O capital estrangeiro invadindo a pátria russa, a valorização do exterior que acaba sendo criticada por Dostoiévski no decorrer do livro através das indagações de Siemiônitch (o narrador) para os outros personagens do livro.
Nesse momento você deve estar imaginando “Ah, um livro de crítica social e política… Parece tão entediante” (se não pensaram nisso desconsidere o comentário), mas a verdade é que é um livro bem agradável de se ler, não complicado e chegando até ser algo divertido de se ler.
A anatomia do crocodilo – Onde estão as costelas, o estômago, as tripas, o fígado e o coração?
O livro conta como um homem acaba sendo engolido por um crocodilo e decide viver dentro dele. Até ai tudo entendido, o problema é como ele sobrevive dentro do animal. Afinal ele é um réptil mágico? Não. Talvez ele seja um robô? Acredito que não passaria na cabeça de Dostoiévski.
A verdade é que Fiódor responde a questão do bicho no próprio livro. A questão é incrivelmente bem respondida, e deixo aqui o trecho para que o gostinho da novela entre na sua mente:
“Nada, não existe absolutamente nada disso e, provavelmente, nunca existiu. Tudo isso provém da imaginação ociosa de viajantes levianos. Assim como se infla uma almofada hemorroidal, assim eu inflo agora o crocodilo com a minha pessoa. Ele é incrivelmente elástico. Até você, na qualidade de amigo da casa, poderia caber ao meu lado, se tivesse espírito generoso, e ainda assim sobraria espaço. Penso até em mandar vir Ielena Ivânovna para cá, se for preciso. Alias, semelhante disposição oca do crocodilo está plenamente de acordo com as ciências naturais. Pois suponhamos, por exemplo, que você seja encarregado de instalar um novo crocodilo; naturalmente, vai surgir-lhe a pergunta: qual é a propriedade fundamental do crocodilo? A resposta é clara: engolir gente. Como conseguir então, pela disposição do crocodilo, que ele engula gente? A resposta é ainda mais clara: fazendo-o oco. Já está há muito resolvido pela física que a natureza não tolera o vazio. De acordo com isto, também as entranhas do crocodilo devem ser justamente vazias, para não tolerar o vazio; por conseguinte, devem incessantemente engolir e encher-se de tudo o que esteja à mão. E eis o único motivo plausível por que todos os crocodilos engolem a nossa espécie. Não foi o que sucedeu, porém, na disposição do homem: quanto mais oca, por exemplo, é uma cabeça humana, tanto menos ela sente ânsia de se encher; e esta é a única exceção à regra geral.”
Considerações finais
Para encerrar essa resenha tenho uma boa e uma má noticia. Começarei com a pior primeiro (para terminarmos bem esse contato com o escritor).
A má noticia é que a novela, o conto, o livro, nunca foi terminado. O crocodilo saia na revista Epokha, que teve sua publicação interrompida em março de 1865, tornando a situação financeira de Dostoévski muito difícil, por cuidar da revista após a morte do irmão. Somando o estado em que se encontrava, a posição atual da revista e a orientação polêmica do texto, acabou perdendo o sentido a continuidade do livro (se supõe).
No livro impresso pela editora 34, na coleção Leste existe algumas anotações que dariam continuidade ao livro, mas no final nunca foram concluídas. Mas essa não é a boa noticia.
O livro ainda traz Notas de inverno sobre impressões de verão, que são crônicas em que o escritor registra, com um tom um tanto polêmico, suas reflexões sobre a viagem que realizou em algumas regiões da Europa, como Alemanha, França e Inglaterra. Destacando o seu lado jornalista, que analisa desde os momentos do trem até os mínimos detalhes das cidades. E essa é a boa notícia, uma leitura extra muito agradável.
Podemos considerar que os livros foram redigidos de 1862 até 1864, já que Notas de inverno sobre impressões de verão, foi de 1862-1863, e O Crocodilo, 1864.
Ficha Catalográfica:
Título: O Crocodilo e Notas de inverno sobre impressões de verão
Autor: Fiódor Dostoiévski
Editora: Editora 34
Páginas: 168
1.”Oh, meu queridíssimo Carlinhos! Mamãe, mamãe, mamãe!”